sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Estrada

Carrego na memória as pedras
acumuladas pela estrada
de poeira e sorrisos
De mãos dadas 
Caminhávamos as curvas
Em olhares
Infinitos que encontravam
O tempo
Cristalizados
Repentino separando
duras lembranças
que em mim ficavam

Pontes


De um lado um tumulto de angustias que se amontoam procurando uma maneira de se expressar, ganhar vida e existir. De outro a tela branca do computador e seu teclado. A ponte é minha psique, tantas vezes solicitada a criar entendimentos e, através dos pensamentos, traduzir ao mundo, minha aflição. Em vão. Minha ponte se recusa a se estender por antigos caminhos e dar forma a meus espaços na velha direção, da pura intelectualização. A ponte está gasta e se cansou das mesmas impressões. Volto ao meu mar de incômodos e nada aparece que componha um caminho pelas letras. As palavras permanecem vazias. Sei que outra ponte é necessária, mais ampla, por onde possa transpor, minha criatividade represada. Construída em outros moldes, assentada sobre minhas fantasias vivas e furtivas. Uma a uma trarei a mim suas pedras e a as manterei unidas, agora com minhas emoções, erguida aos poucos, em nova paisagem. Não há duvidas da necessidade do novo caminho, rumo a minha continuidade. Saberei erguer a ponte e estendê-la a novos horizonte que me aguardam. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Silêncio


Te entrego meu silêncio
Limpo, isento de rancor
Plácido calar santificado
Presente desta alma, hoje indolor

Te entrego tal tesouro
Conquistado a duras mágoas
Na mudez do tempo entalhado
Precipitado lento, da lágrima incolor

Te entrego meu remanso
Brando, em traje puro branco
Da quietude que se faz descanso
A paz serena, meu silêncio franco

domingo, 23 de outubro de 2011

Voltas

Aprendi com as voltas do sol
a confiar no caminho
a enxergar quão unidos
eram os fins e os inícios
Aprendi a circular a vida
arredondar as arestas
e espalhar minha luz
mesmo no estreito da dor
de uma única fresta.

Asas



E no descanso de minha expiração
alarguei meu olhar sem limites
me esparramei em suavidade
e deixei que surgisse
o tão merecido
par de asas da minha liberdade

sábado, 22 de outubro de 2011

Clareza

 
Notei que sutil dançava
Mar de águas tênues
transparentes 
Mar de águas plenas
Sabia ser puro entorno
estar em comum acordo
ao todo
Desaparecer na própria clareza
De belezas. 
De certezas.


Dolorida

Trazia você instilado
na essência desse meu olhar
Perdida na transparência
Te amando precipitada
dolorida
Iludida sem saber
Que você era o orvalho
gota que eu não via
amor que cedo de mim
sem aviso
Partia.

A Boneca Paola



Se me perguntarem onde terá surgido a vida, respondo, definitivamente, que foi na cozinha. Posicionada no centro da casa cuja frente se transformara no aconchegante restaurante italiano, a cozinha era o coração da família Parizzi que me fizera boneca, de presente à Sofia, no dia de seu nascimento. Me chamaram Paola. E dos panos de prato, guardanapos e toalhas de mesa, perfumados e impregnados por cada ingrediente, tempero e aroma dessa calorosa cozinha fui feita colorida e carreguei a trama, o xadrez e os retalhos da história de muitos prazeres degustados.
Cresci com Sofia. Vivi em seu berço, em seu carrinho de passeio e, mais tarde, assim que aprendera a dar seus primeiros passos, conheci o mundo apertada em seu peito: éramos inseparáveis. Sofia fez dos meus primeiros anos de existência, um período inesquecível, invejado por toda e qualquer boneca, mesmo as que viviam trocando de roupa ou mesmo pelas dotadas, que falavam, fechavam os olhos ou até piscavam um olho. Eu, Paola, cabelos macios de lã rubra, olhos de botões negros, sempre abertos, era a preferida. Meu corpo macio me fazia querida e o que me tornava única e irresistível eram meus perfumes, lembranças saborosas que constituíam minha essência e minha maior herança. 
Crescemos, eu e Sofia, que agora tinha amigas de escola, passeios de bicicleta, e a energia alegre de uma garota de nove anos que sonhava em ganhar um cãozinho.
Foi então que entendi o sentido da vida.
Totó, como foi chamado o pequeno salsicha ruivo que chegara de presente no nosso aniversário, foi meu amor à primeira vista.
Sofia não se continha com a surpresa e eu paralisei de emoção, quase morrendo quando percebi que ele me olhava fixamente, me desejando, correspondendo à paixão que mal cabia em mim.
Vivemos o verdadeiro amor. Totó me sentia, farejava de longe meus aromas e me olhava fixamente, encantado, quando não me alcançava e não podia colar o focinho no meu corpo macio. Mas bastava eu parecer ao seu alcance que Totó pulava alto, bem mais que suas pernas curtinhas, me agarrando e me levando pela boca à cozinha, nosso cantinho predileto. E me lambia, lambia, carinhoso, jamais escondendo seu afeto.
Combinávamos em tudo, feito pão e salsicha. E ainda combinamos, assim, não mudamos de gosto, não enjoamos, feitos um para o outro.
A infância de Sofia nunca me esqueceu, mas se foi... E deu lugar para novos amores.
Eu permaneci boneca, até hoje... A boneca de Totó.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Fio



Desfiz cada um
dos nós
Do acaso
Até descobrir
Que éramos feitos
Do mesmo
Fio



Chuva de verão

Quando chove de repente no verão
Sinto lavar na alma as reticências
Desnecessárias e tão quentes carregadas
Pela água forte, aos poucos, refrescadas


E fito o ar quente a sorrir
Evaporando, em dança, satisfeito
E eu também me ponho a fluir
Misturada às gotas transparentes


E o ardente dos loucos sentimentos
Que insiste o meu sereno, derreter
Dissolve-se na chuva de verão...
Um fresco ameno, agora, é meu viver

Lago

Meu olhar se alargou e buscou a calma.
Do lago.
Abraçado à água firme de quem vê em dobro. 
Espelho da alma.
Você me descansava.
Eu era agora a certeza plena de caber inteira.
Em seus olhos
Lago plano do meu brilho refletido
Em suas águas doces e profundas. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Aquarela


Hoje tinha tristeza... no colorido do amanhecer
O que se passou com o sol enquanto eu dormia?
Sua luz diluída em lágrimas tingia
O mundo tal qual aquarela
A melancolia dos tons suaves
das cores que sobreviveram ao tempo que
Sem volta, passava...
Contemplei cada imagem
Me  impregnei das mesmas cores
E me dei conta de que chorava, junto com o sol
De saudades...
Saudades da eternidade.







Nas Livrarias ou no site da Editora: www.biblioteca24x7.com

Tulipa














Não repartiremos as noites
As danças, as taças, se foram...
Eras único, perfeito amor
Tu, minha tulipa
Elegante, imponente, por poucos merecida
Por que foi? Por que calada partistes?
Sem reticências, sem adeus, limpa
Tu eras, tudo em mim, tulipa
Por que não volta?
Por que não fica?

Amanhecer

O dia desprendeu-se aos poucos
do abraço da noite
sem despedida
sem medo da partida
Deixou tanto azul para trás
Alargou de vez seu sorriso
e amplo tocou toda a terra
num beijo longo e doce
de amanhecer

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Infância











Algodão-doce
Sonhos ao vento
Acabou-se.

Eu

Sou a batida da vida na minha pedra

Sem volta

Quando o tempo der mais uma volta
recolhendo as flores
desprendendo as folhas
amadurecendo as dores
que venha logo à minha porta
meu medo já não importa
Me solte pelas raízes
Me sopre
distante
Longe da terra
Serei amante do tempo
eterna
Sem volta, sem adiante.

Estrelas



Não olhe as estrelas como se soubesse
A razão de permanecerem distantes
O motivo de insistirem no brilho
O porquê de existirem...
Olhe as estrelas em silêncio e respeito
Não faça perguntas... muito menos tenha respostas
Enxergue-as por dentro, ouça como pulsam em seu coração

As estrelas... em oração...

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sal






Somos nosso sal
de experiências
ardentes e cortantes
de linhas aprofundadas
perspectivas que se abrem
e nos transformam
em novos planos







Lições

A vida vai ensinando a fazer curvas
A responder mais baixo
Mais lento
A não responder.
A vida tenta tantas vezes
Me fazer ouvir
atento
Olhar de longe
Enxergar mais...

Será que um dia
eu aprendo?

Perdão


Na cadeira de balanço 
descansei meus erros 
meus rascunhos
desistidos

Embalei antigas dores
em cantigas longas
dissolvendo lento
meus desencantos

Deixei que escorressem
lágrimas represadas
velhos rancores 
já desbotados

Balancei ameno
perdoando longo...

E as lembranças abracei
no balanço da cadeira
dos doces suspiros 
dos loucos amores.

No meio

Um dia senti minha falta
na rotina da escrita vazia.

Traduzi palavras difíceis
Me procurei  nas páginas
pares
ímpares
Tentei a leitura adiante.
Inglória!

Minha história, então,
Refiz.
Agora escrevo o que encanta
o coração
das minhas páginas em branco.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Paz

As ondas estouravam nas rochas 
das minhas convicções
lavando os musgos
dos meus preconceitos
bradando mais alto
que meus reclamos
Deixando ao final
esparramada em mim
a espuma branca
da paz vindoura

Futuros

Saí rasgando o passado
as roupas
o que eu era
Questionei o presente
Me olhei de frente
E sorri... longamente
Prometi a mim
muitos
e muitos
futuros

Oceano






Gosto de desistir
do que sou
Ver desfazer
minha onda
para lembrar
meu todo
oceano
Eram coloridos
os trechos
da linha do tempo
costurados
com você.

Desejo


Entrar em você por um beijo
Afogar meu desejo em saliva
Derreter no calor dos seus lábios
Sem saber se ainda estou viva

Colar o meu rosto em teu peito
Lamber seu perfume embriagante
Esparramar minha pele envolvente
Mergulhar em você fascinante

Trançar minhas pernas nas suas
Encontrar sua viril rigidez
Te amar em meu fogo molhado
Dissolver-me em ti de uma vez

domingo, 16 de outubro de 2011

De olhos fechados

Há dias não aparece
Pelas frestas da janela
A beijar-me os olhos de leve
A luz macia do sol
Recém-nascida da noite
Que aprontastes, meu sol?
Impedido pelas nuvens
Escondido em castigo
Me pune com tanta ausência
Paciência...
Nublada permaneço
De olhos fechados

A te esperar

Ostra


A dureza da concha
traz sob o manto
a impureza

E serena transforma

A dor da estranheza
no brilho
da pérola-beleza

Aprofundando



O raso ficou para trás
enquanto eu caminhava...
A vida trazendo sua água
o mar além da cintura
aprofundando o que era...
A delícia de ir sem volta
deixar molhar cada dia
transbordar...
E ser finalmente eu mesma
O mar.


Noite


A noite cai em silêncio. Negro.
Aprofundando as dúvidas, penetrando lenta, a noite não faz perguntas.
Jaz.
Densa.
E faz de mim meu ponto cego. Não nego.
A noite é dona. De meus medos. De meus sonhos.
Carrega o universo e as estrelas.
A noite.
Toda.

Sedução

Gosto dos cheiros da noite
Penetrantes
Que absorvo sem retorno
Não te perdoo
Tão excitante 
Dentro de mim
dama da noite

Brincadeira

Vou brincar mais um pouco
Abusar dos sorrisos
Vou dizer que preciso
De mais tempo de vida
Me esparramar feito louco
Vou crescer sem tamanho
Todo mundo assoprando
Eu virando gigante
Do sabão desprendendo
Bolha linda a voar
Todas cores brilhando
Girando em pura leveza
Brincando só mais um pouco
Até desfazer no ar

sábado, 15 de outubro de 2011

Chama



Nada me aprisiona, sou a chama ardente
Do pavio dessa vida que constante queima
Ora forte, luminosa, brilhando para sempre
Em seguida branda, quase apago, ao sabor do vento

Incoerente
Nem entendo, nem pretendo
Direcionar minha flama
Sigo queimando, até o fim, a alma que me chama

Livre?



Livre ela atravessava a vida, sempre adiante. Sobre o galho constante, longo e firme. Quem discordaria? Caminhava o trecho iluminado de sua existência. Bela. Aquecida pela fogueira do sol distante, que não queima. Mas mantém. Toda a sequência. Por onde ia a formiga. E meu olhar reto. Eu a seguia. E eu... também seguia...? Balancei em dúvida! Me vi formiga. Passo a passo. Em meu caminho. Sobre um galho que eu não via. Na mesma liberdade. De atravessar a vida.  

Adiante

Você era a curva suave
da estrada de ferro dos meus dias
Dormentes
Retos.
A inclinação discreta traçada
de um sorriso
para onde meu tédio fugia
Você era a paisagem adiante
Não avistada
Desse alguém
O som da velha esperança,
um sorriso de criança
ao ouvir o apito do trem.

OCO


Não era sempre que se sentia oco. Podia jurar que só acontecia nos dias de vento mas não ousava contar a ninguém mais essa descoberta. Nem buscava saber, ir além, desvendar. Já bastava carregar sozinho o pesado segredo de poder voar.
 
Mas era fato. Naqueles dias seus ossos ficavam tão leves que sentia seu corpo flutuar na cama assim que acordava. E podia mover as escápulas em movimentos amplos, livres, verdadeiras asas ancoradas nas costas. A sensação era imensa. Irresistível.

Subia a colina detrás da casa, mal podendo esperar pelo momento de sentir seus pés se desprenderem do chão, os braços se alargarem, o rosto romper o ar, o corpo suspenso, voar. A vida do alto era fresca. Plena.

Uma pena o cansaço chegar e trazê-lo de volta à terra. Mas permanecia longe, um bom tempo ainda, carregando a imensidão dentro dos olhos. O ar do mundo nos pulmões. Sem limites. E o oco por dentro.
Delicioso.
Louco.
Nos dias de vento. 

Fluir

Se o fluir do tempo lavasse    
A sujeira das minhas maldades
Se o fluir do tempo limpasse
As marcas dos negros enganos

Se o fluir do tempo levasse
As lembranças de todos meus danos

E perdoasse...
 
Como água ligeira escorrendo
A você eu retornaria   
E o leito cansado do meu rio
Ao seu mar
Afinal
Se entregaria

Longe


Vou deixar os meus sapatos
Me levarem para longe
Onde não existem planos
Onde não cabem enganos

Vou deixar a minha roupa
Falar de mim à vontade
Bobagens, algumas verdades
Contar de vez minha idade

Vou deixar meus documentos
Junto com meus pensamentos
Dobrados e bem guardados
Junto com o meu passado

Vou deixar os meus cabelos
Soltos, perdidos no vento
Onde o tempo só acalma
Onde voa a minha alma

Nas livrarias e no site da editora: www.biblioteca24horas.com








sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Umidade


Beijada longamente pelo mar
a areia continha a umidade virgem
de quem cedia sem temor
recolhendo em cada passo
o toque doce
de todo esse amor





Sorriso do Mar



Às vezes o mar me olha
por dentro
e sorri.
Inunda minhas memórias
de azul certeza.
E me recordo da beleza
dos meus não-tempos
de quando ainda éramos
um só.

Agonia


Quantos mares abertos em meu peito
quebrando suas ondas frias
em minhas angústias duras
Me partindo em tantas
Salgando dúvidas
Rompendo certezas
Me tragando em dores
Mares de fúria
Mares de tempos

de agonia.

MARTIM-PESCADOR




Foi em agosto que a mãe dera à luz Martim que, nascido cego, conhecera somente a escuridão. Dos olhos para fora, as irmãs Lúcia e Marina deram contorno à sua infância, e o dia-a-dia junto ao mar tratou de preenchê-lo com sua água viva. Sem o dizível das imagens, as cores francas ou o explícito enquadramento do olhar, Martim via sem fim. Conhecia a praia larga, o macio e o duro vento, o sabor da chuva por perto, o cheiro da areia molhada pisada já noite, o mar do dia seguinte. E foi ainda rapaz que mergulhou em sua profundidade, revelando-se o melhor pescador de sua ilha natal.
Seu dia começava com a avaliação dos sinais naturais: punha-se de pé em frente ao mar trocando segredos mútuos, ouvindo a extensão da maré, a pressão do vento no corpo, sua direção, se traria ou não chuvas ou se seria suficiente para dar força às velas. Sabia ouvir as ondas e compreender se fariam espuma ou se o mar seria um berço com um leve movimento de abano. Encontrariam cardumes? Na superfície? Ou partiriam para o peixe de profundidade? Além de respondê-las, conseguia pressentir o horário do dia em que ocorreriam e ninguém saía ao mar sem consultá-lo. Martim não via, vivia o mar e trazia-o dentro de si em profundo respeito.
Mas outros rumos estavam reservados a Martim-pescador, como era largamente conhecido na ilha.
Sozinho no barco, o mar do final daquele dia devolvia-o imerso no silêncio das águas calmas do trabalho findo quando, já perto da praia, finos e aflitos sons despertaram sua atenção. Tão frágeis que Martim chegou a duvidar se, de fato, os ouvira. Mas, sim, vinham de pequeninas aves boiando à mercê das águas, num ninho desprendido das vegetações junto às pedras. Martim por certo não os vira, mas a presença das vidas diminutas definitivamente o atraíra para dentro das águas que até então sua pele não ousara conhecer. Sem o chão sob os pés, Martim pela primeira vez sentiu a água envolver-lhe por completo, num misto de prazer e pertencimento que aos poucos foi lhe tomando o fôlego, como se quisesse absorver sua essência. O mar lentamente tragava-lhe a alma e sorvia o sopro de sua existência. Emergindo e submergindo, engolia e respirava o oceano da sua vida, indo-se, esvaindo-se, ao mar, fora de si, adentro, agora um só.
Martim se foi.
E o mar permaneceu... carregando, no mesmo abraço, o ninho com as vivas e pequeninas aves e o corpo de Martim-pescador.

Poço




Há um poço em mim.
Um poço de morte. Carregando meus escuros, meus inversos, minhas horas duras.
Apagando encantos, bebendo meu pranto.
Um poço de canto.
Também de vida. Verde onde vem da terra, de musgos, tantos... e também de flores.
Insistentes. Perseguindo a luz escassa. Escapada. Debaixo da garganta desse poço.
Meu. Humano. Poço de todos.

Vão





Espio a vida pela minha fresta. A que define o ângulo e a inclinação dos meus dias. E mais do que as cores, determina os tons. Dos planos. Passados e futuros.
Gosto dessa brecha por onde tudo vem a mim melancólico. Impregnado com a luz de brilho esforçado das manhãs de outono. A imagem lenta das folhas de coqueiro balançando sem pressa e o vento soprando por trás. Na nuca. Como um chamado para o começo da música, de volta, aos inícios já vencidos.
E você é lindo visto daqui. Da fresta silenciosa da minha melancolia. Só eu sei essa beleza, só a mim chega assim. Será minha fatia de olhar que te faz tão pleno?  Esse que só eu vejo, essa versão sutil de você? Pouco importa. Se te vejo, se me ocorre, basta.
A vida vem por todos os vãos, somos os próprios vãos a defini-la. Somos o escape, a beirada, a franja, o triz por onde ela escorre.
E como vem... vai.
Pelos mesmos vãos dessa existência.


Lapidada



Não entendi os cortes
abruptos
Interrompidas as linhas
tive medo
da morte.

Só mais tarde
percebi a sorte.
Fui lapidada.

Agora eu era
Meu diamante.

Cântaro




Meu cântaro
transbordava em lágrimas
mas permanecia
de asas abertas.




Noite







Adoro as indecências da noite
que dispensa as roupas
afrouxa os escrúpulos
acende os desejos

Adoro a noite longa
lenta... desatenta
Sem desculpas você me tenta
Sem receios me experimenta

Noite tão fresca... gosto de menta