Se me perguntarem onde terá surgido a vida, respondo, definitivamente, que foi na cozinha. Posicionada no centro da casa cuja frente se transformara no aconchegante restaurante italiano, a cozinha era o coração da família Parizzi que me fizera boneca, de presente à Sofia, no dia de seu nascimento. Me chamaram Paola. E dos panos de prato, guardanapos e toalhas de mesa, perfumados e impregnados por cada ingrediente, tempero e aroma dessa calorosa cozinha fui feita colorida e carreguei a trama, o xadrez e os retalhos da história de muitos prazeres degustados.
Cresci com Sofia. Vivi em seu berço, em seu carrinho de passeio e, mais tarde, assim que aprendera a dar seus primeiros passos, conheci o mundo apertada em seu peito: éramos inseparáveis. Sofia fez dos meus primeiros anos de existência, um período inesquecível, invejado por toda e qualquer boneca, mesmo as que viviam trocando de roupa ou mesmo pelas dotadas, que falavam, fechavam os olhos ou até piscavam um olho. Eu, Paola, cabelos macios de lã rubra, olhos de botões negros, sempre abertos, era a preferida. Meu corpo macio me fazia querida e o que me tornava única e irresistível eram meus perfumes, lembranças saborosas que constituíam minha essência e minha maior herança.
Crescemos, eu e Sofia, que agora tinha amigas de escola, passeios de bicicleta, e a energia alegre de uma garota de nove anos que sonhava em ganhar um cãozinho.
Foi então que entendi o sentido da vida.
Totó, como foi chamado o pequeno salsicha ruivo que chegara de presente no nosso aniversário, foi meu amor à primeira vista.
Sofia não se continha com a surpresa e eu paralisei de emoção, quase morrendo quando percebi que ele me olhava fixamente, me desejando, correspondendo à paixão que mal cabia em mim.
Vivemos o verdadeiro amor. Totó me sentia, farejava de longe meus aromas e me olhava fixamente, encantado, quando não me alcançava e não podia colar o focinho no meu corpo macio. Mas bastava eu parecer ao seu alcance que Totó pulava alto, bem mais que suas pernas curtinhas, me agarrando e me levando pela boca à cozinha, nosso cantinho predileto. E me lambia, lambia, carinhoso, jamais escondendo seu afeto.
Combinávamos em tudo, feito pão e salsicha. E ainda combinamos, assim, não mudamos de gosto, não enjoamos, feitos um para o outro.
A infância de Sofia nunca me esqueceu, mas se foi... E deu lugar para novos amores.
Eu permaneci boneca, até hoje... A boneca de Totó.